quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O SOM COMO LIBERTAÇÃO ESPIRITUAL EM "O SILÊNCIO", DE MAKHMALBAF

Por Marcelo Ikeda

O Silêncio, de Mohsen Makhmalbaf, é um filme que rompe a hipocrisia de uma estética que se diz neutra/transparente, intervindo na forma como o espectador absorve o som. Ao contar a visão de mundo de um garoto cego, Makhmalbaf desde o início de seu filme conduz o seu filme pelos sons, pela audição, e não pela imagem, como é a regra no cinema clássico americano. Khorshid, o garoto cego, escolhe pães para sua mãe. Após hesitar em vários, ele finalmente aprova os pães de uma das vendedoras. Mas em seguida diz que sua escolha foi por causa da bela voz da vendedora, e não pela qualidade em si do pão. Os sons, de fato, guiam os passos de Khorshid, especialmente nas movimentadas ruas iranianas.

Em vários momentos do filme, Makhmalbaf troca a concepção clássica de ponto de vista pelo conceito de ponto de audição. Quando Khorshid está no ônibus, Makhmalbaf alterna o foco do segundo plano, mantendo a orelha do menino em primeiro plano para sugerir a mudança de atenção do menino para outros ambientes.

O caso mais radical da utilização de um ponto de audição ocorre na cena do mercado. Khorshid se perde de sua amiga, e ela resolve procurá-lo. Quando a câmera está na menina, ouvimos apenas os sons ambientes do local, o murmurinho da multidão e os anúncios dos vendedores. Mas quando a câmera acompanha o menino, vemos que os sons aparecem modificados. A poesia dos sons absorvidos por Khorshid ressalta o que não percebemos com nossa atenção às superfícies do meio físico. O ponto de audição, no caso, torna-se uma "câmera subjetiva". Makhmalbaf, de forma ainda mais poética, permitiu que o menino e sua amiga se reencontrassem de uma forma a ressaltar a utilização do som. O encontro só foi possível quando a amiga fecha os olhos. Guiada não mais pelos olhos, que circulavam a caótica multidão do mercado, mas agora pelos sons, ela encontra Khorshid fora do ambiente claustrofóbico do mercado.

Se Makhmalbaf recusa os padrões da narrativa clássica americana, isto sinaliza que o cineasta busca a liberdade. De fato, a liberdade é um tema bastante presente ao longo de todo o filme. O diretor, portanto, une um conceito estético de liberdade com uma proposta temática. Ora, o cinema clássico americano é acima de tudo materialista, e a recusa de Makhmalbaf por esses valores vai exatamente de encontro ao som, de natureza intangível, numa busca pelo espiritual/transcendental. Toda a peregrinação de Khorshid pelas ruas da cidade representa uma tentativa de libertação de um mundo guiado pelas necessidades físicas. Sua mãe está preocupada com o aluguel a ser pago no final do mês, e lança o filho às ruas. O menino precisa de dinheiro, necessidade que em geral envolve o mundo dos adultos, seja a mãe, os fiscais dos ônibus e o próprio dono da loja de instrumentos. A busca de Khorshid pelo som é a busca de Makhmalbaf pelo intangível, por uma libertação das necessidades concretas para atingir um nível espiritual, transcendendo a aparência da realidade concreta.

A preocupação de Makhmalbaf com o som, com o indizível, é tamanha que ele nem se preocupa em exibir as pessoas que representam a opressão no sistema. Identificar uma voz a um corpo é requisito básico do cinema clássico. No entanto, Makhmalbaf não mostra o rosto nem do dono da loja de instrumentos nem do locador da residência.

O desejo de libertação de Khorshid é ocultado pela ânsia materialista do mundo dos adultos. Khorshid possui uma incrível sensibilidade para apurar os instrumentos, já que, como vemos ao longo de todo o filme através de seu ponto de audição, ele possui um sentido acústico bastante desenvolvido em relação ao das demais pessoas. Ainda assim, o dono da loja de instrumentos e o professor que rege a orquestra de meninos dizem que Khorshid não sabe afinar os instrumentos. De fato, a sociedade geralmente se volta contra aqueles que possuem uma sensibilidade maior que a média, recriminando seus sentimentos. Numa sociedade especialmente consumista, os desejos e as sensibilidades devem ser moldadas segundo um padrão médio, gosto estabelecido pelo mercado. Aquele que se diferencia é recriminado. Da mesma forma, o próprio cinema de Makhmalbaf, com uma maior sensibilidade e abertura em relação ao cinema americano, é visto por muitos como "retroativo" e "monótono". Não por acaso, Khorshid possui uma sensibilidade musical que tem como tema recorrente as quatro notas da abertura da 5ª sinfonia de Beethoven, compositor genial considerado por muitos em sua época como um louco.

O cinema de Makhmalbaf é um cinema de libertação porque ele acredita que o caminho de transformação pode ser seguido. Daí a idéia da criança, que simboliza a esperança e o futuro. Novamente em relação aos sons, sua trajetória é de uma completa transformação. O filme começa com as quatro batidas do locador da residência, cobrando o dinheiro do aluguel. Mas no final, os mesmos quatro sons da abertura se transformaram na própria sinfonia de Beethoven. A liberdade do menino, que foge do mundo materialista das batidas do locador, é alcançada através de uma manifestação artística, com a sinfonia. Makhmalbaf no fundo fala sobre o papel do artista nessa transformação, apontando os caminhos para a transformação e indicando a arte como manifestação de uma essência de indivíduo diretamente relacionada à idéia de liberdade.

Por fim, se O Silêncio é guiado especialmente através dos sons, as imagens também possuem importante função. Já que o filme fala sobre o tema da liberdade, o diretor promove uma associação entre os homens e os animais, que também são oprimidos em sua liberdade pelos homens para atingir objetivos físicos materialistas. Na cena mais marcante, através da montagem, Makhmalbaf associa um menino que carrega Khorshid em um carrinho de mão para ganhar uns trocados com um animal de carga. O esforço sobre-humano do pequeno garoto é entrecruzado com cenas de animais de carga. A associação fica explícita com o uso da montagem, numa perspectiva puramente eisensteiniana, como na famosa cena da matança em A Greve (1928).

Ao final do filme, à beira do lago, Khorshid parece próximo de sua libertação individual, embora não tenha recuperado o dinheiro do aluguel. O menino brinca à beira da água, caminhando como numa dança de um ritual, que o diretor corta para acompanhar os passos de um cavalo sobre as águas. A poética associação, o encontro do homem com sua autêntica natureza, insere a questão do ciclo e da transitoriedade da matéria. Nesse ponto, Makhmalbaf se aproxima mais da poesia de Alexander Dovzhenko do que de Eisenstein.


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